terça-feira, 20 de setembro de 2022

A anulação e o redemoinho

De começo, foi compulsório. Em meio a fraldas, choros, banhos, choros, peito, expectativas, medos, desconhecido. Não tinha como ser diferente, a anulação me foi exigida.

Fui levando assim, tão anulada que tenho até dificuldade de recordar muito do que vivi nesse período. De uns 3 meses, me faltam lembranças.

Aí vem a fase da curtição. Bebê fofinho, aprender, estar presente, se fazer mãe, conhecer aquele outro que chega - de tão longe que em nada se parece com algo que eu já tenha visto antes. A anulação continua, por que nem percebo minha própria existência.

Mas aí a realidade bate na porta. É preciso resgatar a profissional, a administradora do lar e de relacionamentos, um pouco de alguém que já fui. Faço isso, da melhor forma que posso, mas um tempo depois percebo que foi ligado o tal piloto automático. Muito bom, mas ainda estava ali a anulação de mim.

Tudo bem, terei tempo de me encontrar. E o tempo passa.
Mas o tempo passa, e não foi.

Agora, o furacão da vida me exige novamente – ou ainda - a anulação.

Fiz uma escolha de ser gentil. Comigo e com minha filha. Para tanto, é necessário: zero expectativas, zero desejos, zero vontades. Pois como ficaria nervosa, como fiquei nas poucas experiências que tive, quando espero poder lavar o cabelo e a criança não que sair do colo.

Como ficaria ansiosa se quisesse tirar o buço, e minha filha não dormisse na hora. Como ficaria irritada se quisesse ir ao banheiro para o número dois e ela não parasse de chorar.

Não, mais fácil anular para não perder as estribeiras. Para viver uma vida calma, sem violências, violações ou abusos.

Só que essa escolha, que nem é tão racional assim, é uma via de mão dupla, e pode até ser uma armadilha. Não é fácil se reencontrar, quanto mais tempo passa fica ainda mais difícil. Por enquanto tem sido assim, cada dia mais difícil.

Meu corpo, minha vida social, meus desejos como mulher, minha qualidade profissional, minha autoestima, amizades, enfim. Parece estar tudo desmoronando. Uso uma boa analogia, ainda não consegui melhor:

Sabe o alto mar? Ali tem um redemoinho bem grande, daqueles bem certinhos que fazem a espiral pra baixo, sem fim? É ali que me encontro. Não tem nada, absolutamente nada, que possa vir a me ajudar. Uma corda, uma mão, navio, barquinho, mão de Deus, nada.

Só vou descendo, redemoinho abaixo, sem saída. E o mais doido é que estou vendo tudo isso acontecer. Vejo os quilos aumentando na balança, vejo as amigas se distanciando e precisando de mim, vejo o cabelo cada dia mais ressecado, meu rosto com rugas e as unhas por fazer.

Acho bom. Acho um bom sinal esse da consciência. É importante saber o problema em que nos encontramos, só assim podemos pensar numa saída. O complicado é que, nesse caso, faz tempo que vejo e ainda não sei por onde. Estou lá, no redemoinho sem fim, só descendo.

Não posso negar que há respiros, saídas temporárias que causam a sensação de controle. Mas são apenas respiros.

Escrevo aqui essas palavras, que se unem nesse desabafo, pois ultimamente me peguei contando isso para algumas pessoas, percebia a necessidade de contar. Para desabafar, sim. Preciso. E também para que saibam. É preciso falar sobre a anulação das mulheres após se tornarem mães!

Penso em algumas mulheres que conheci na minha vida. A maioria, sogras. Que passaram a vida nesse redemoinho de anulação. Penso em como, talvez (espero que não), seja fácil ficar por ali mesmo, se deixando levar pela criação dos filhos, o dia a dia da vida, o cotidiano com a família, se anulando. Se anulando até se perder completamente.

Essas mulheres que conheci são hoje um tanto controladoras, exigentes, não tem amigos ou vida fora do círculo familiar. A gente fala muito de como é possível uma mulher passar a vida cuidando da família e não conseguir cuidar de si e construir uma vida independente. Mas, te juro, é doido entender como isso acontece emocionalmente.

E viver isso é bem assustador. E impressionante. E forte.

Espero conseguir. Espero que todas nós consigamos. Não nos deixemos esquecer. Não nos deixemos escapar. Bora chegar lá embaixo, no fundo do mar, e catar um trem no chão que nos ajude a subir de volta. Ainda mais fortes. Como em todas as vezes, que cada mulher caiu, e levantou e conseguiu.

Como se constrói uma mãe

A mãe é moldada por mãos pequenas, redondinhas e macias. As mais delicadas.

Algodão e água morna. Carinho, toalhas e pelúcias.

Para construir uma mãe, vai um tanto de banho. Banho à tarde, pela manhã, banho à noite. Banho do sono. Banho de carícia, de massagem, de limpeza.

Tem os bicos. Do peito, mamadeira, chupetas. Sempre tem os bicos.

Ela se alimenta de restos de fruta - a casca, na maioria das vezes. Mas também aceita restos do feijão e do biscoito.

Mãe se constrói com choros. Muitos. Infinitos. E remédios, e sintomas, e suspeitas.

Curvas. Das perninhas, do carro em movimento, curva do crescimento, do mordedor adequado.

Olhares constroem mães. Olhares profundos, certeiros, tão doces, tão sinceros, tão únicos. Olhares que são só delas, e de mais ninguém. 

Limpar o chão dos restos, panos, roupas, vassoura aqui e acolá. Todo dia. O dia todo.

Espera. Para construir uma mãe, tem que ter um bocado de espera. Desde o princípio, até para sempre.

Uma mãe se constrói de 365 dias de NÃO. NÃOs graves, baixinhos, sinalizados com os dedos ou gestos diversos. Tem até música pro NÃO.

Ao se fazer uma mãe, é preciso o cheirinho.  Ah, o tão conhecido e especial cheirinho. [Se fosse possível guardar, ou engarrafar...]

Medo. Um medo que nem sei. Medo que vira estrutura de mãe, de tanto que é. 

Assim também, se constrói uma mãe: na chuva, as maritacas alvoroçam. E mãe tem desejo de mostrar/ensinar a beleza ao filho. Desejos, desejos! Desejos de ensinar, orientar, ajudar.

De monte tem também os sonhos. São os mais. São tantos, e tão variados e tão profundos. Que só mãe mesmo.

Eca, lixo, caca, sujo. Anúncios do que não deve ser feito, tocado, comido. Mãe é feita de um tanto desses.

Ah! Ao contrário do que pensam, palpites não são necessários para se fazer uma mãe. Então, estão de fora os palpites.

Os dedinhos aprendendo, os movimentos de cada falange sendo apreciados bem de pertinho, com orgulho.

Ahhh o orgulho, de orgulho se constroem as mães. Orgulho, orgulho, orgulho! Orgulho de suas crias por cada tudo.

Arruma, guarda, lava, limpa. Sem dúvida alguma, é preciso serviço de casa para construir uma mãe. Muito serviço de casa.

Os sorrisos são muitos, demais. Tem aquele primeiro - ou os primeiros, inesquecíveis. E depois não param de vir. Vem com sons de todo tipo, que de alguma forma fazem até dançar.

E assim, se fazendo, elas vão. As mães. 

Um se fazer sem fim. Ainda depois, seguem se construindo, as mães.

Mãma, dá, eu te amo, te odeio, me ajuda, sai daqui. Palavras constroem as mães, chegando aos poucos, de todo tipo e por muitos motivos.

Vão sendo elas, as mães, sempre em construção.

Nunca ficam prontas, nunca se acaba a construção de uma mãe. Mas preparadas, ah, isso elas ficam. Para qualquer coisa.

Aos trancos e barrancos, elas estão ali, ao lado da cria. Beijam, abraçam, choram. Amam. As mães, elas amam.


*Escrevi esse texto próximo ao dia das mães de 2022.